quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Acho de extrema importância a reprodução de texto sobre o "apequenamento cultural" que Porto Alegre vem sofrendo, concordo (quase que) totalmente com as palavras ditas pelo autor do texto Marcelo Soares, no artigo publicado originalmente no Portal MTV. Segue o texto na íntegra:


O triste caso da cidade que se apequenou e só notou quando viu a sola do chinelo sobre sua cabeça

Ontem, soube de uma notícia triste: fechou a sala de cinema Norberto Lubisco, que ficava na Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre. A sala foi fechada pela secretária de Cultura, Mônica Leal. Pelo que entendi ao ler o blog da secretária, o fechamento da sala foi assinado depois que ela voltou de uma cavalgada gaudéria. Diz muito a respeito do que se passa no chamado Estado Mais Culto do Brasil. Nunca fui um grande frequentador de cinema, mas foi lá que vi alguns dos melhores filmes a que assisti.

Todo janeiro, nos anos 90, a sala reprisava a Trilogia das Cores, do Krzystof Kieslowsky - permitindo que eu pudesse suspirar pela força da fragilidade da Juliette Binoche no azul e pela sensualidade felina da Julie Delpy no branco. O saudoso crítico de cinema Jefferson Barros, meu mestre e semipadrasto em certo ponto dos anos 90, tinha literalmente uma carteirinha da sala.

Quando estava começando a namorar minha mulher, há quase oito anos, foi lá que assistimos "As Invasões Bárbaras", além de vários filmes do Fellini - incluindo "Roma" e "A Estrada". Minha mulher, editora do CENA e colaboradora da revista Movie, considera que toda sua formação cinematográfica passou por lá. Não é pouca coisa.


O pessoal de Porto Alegre está desolado com isso, e não é pra menos. A sala tinha uma importância grande. Por mais que a secretária diga que vai requalificar a outra sala da CCMQ, ainda assim é uma sala a menos.

Mas o problema é mais embaixo ainda. BEM mais embaixo.

A Cláudia Laitano acha que Porto Alegre está se apequenando. Ela vai direto na jugular do problema:

"Podemos colocar a culpa na Sedac, no fato de a secretária Monica Leal não ter intimidade com a Cultura ou na constatação óbvia de que o atual governo do Estado não considera a área cultural um assunto realmente relevante, mas é preciso levar em conta que boa parte da culpa desse marasmo é de todos nós que vamos ao cinema e frequentamos (ou gostaríamos de frequentar) centros culturais. Minha sensação é de que Porto Alegre está “se apequenando”, se conformando com o marasmo da cena cultural como um todo, com poucos cinemas com programação fora do mainstream, com poucos centros culturais atuantes, com pouca ou nenhuma política cultural pública. A cidade está encolhendo, e nós com ela. E a área cultural é o melhor indicador desse fenômeno."
Eu cheguei à mesma conclusão, também - e já faz dez anos. Meu sogro chegou à mesma conclusão também, depois de conhecer a oferta de programação cinematográfica de São Paulo e de ver que, por mais obscuro que seja o filme, sempre tem gente assistindo. E não é um ou dois.

O processo de apequenamento de Porto Alegre vem ocorrendo há anos, e é surpreendente que os remanescentes precisem do baque do fechamento da sala Norberto Lubisco para constatar isso. Eu comecei a notar isso no final dos anos 90, quando a banca da Praça da Alfândega deixou de ser a melhor da cidade. Se há 15 anos ela tinha todas as revistas importadas mais fascinantes e jornais do Brasil inteiro, hoje ela é especializada em vender apostila de concurso público e DVD pornô. Depois, os cafés da Rua da Praia começaram, um a um, a virar financeiras de empréstimos com crédito consignado.

Rolava um sucateamento muito claro, mas o discurso oficial era que o Rio Grande ainda era grande. O problema fundamental é econômico - grande parte do boom imobiliário de Porto Alegre nos últimos anos se deve ao preço internacional dos grãos plantados no interior. Na cidade, as oportunidades estão em fazer concurso público. O pessoal que gosta do desafio de criar e empreender, como bem lembrou o Alexandre de Santi no primeiro comentário aí embaixo, acaba desistindo de dar murro em ponta de faca e vai embora. E é esse pessoal que movimenta bons cinemas, boas livrarias, boas bancas.

Enquanto a realidade não dá um tapa na cara deles, os gaúchos costumam se contentar com o velho discurso triunfalista: somos o Estado mais culto do Brasil, sirvam nossas façanhas de modelo a toda Terra etc. Em particular, os mais inteligentes (e há vários) até admitem que não está tão bom. Em público, fazem questão de não tocar no assunto. Os menos inteligentes fazem questão de voltar uma sharia contra quem toca.

"Gaúcho" é a palavra mais comum nos títulos dos jornais locais, e vira festa quando se trata de desastres que repercutem mundialmente. Quando houve o terremoto do Haiti, eu apostei que a manchete da Zero Hora seria "Gaúchos morrem em terremoto no Haiti". Errei: não era a manchete, mas uma chamada na primeira página. No discurso superlativo padrão, o RS é o estado mais culto, mais politizado, mais educado, centro do universo, medida de todas as coisas.

Mas como é que um Estado que se considera o mais culto do Brasil tem a imprensa que tem, que não é conhecida exatamente pelo jornalismo crítico? Um grande amigo meu, correspondente da Folha de S.Paulo em Porto Alegre, rolava de rir durante o longo escândalo da Yeda Crusius. A coisa mais fácil que havia era dar notícias exclusivas, porque os jornais locais - onde ainda tenho grandes amigos, diga-se - faziam questão de se abster de serem os primeiros a dar. Depois que ele publicava, todo mundo (que certamente já tinha junto com ele as informações) publicava atribuindo a revelação à Folha de S.Paulo.

Mas como é que um Estado que se considera o mais culto do Brasil celebra todo ano a pujança de uma feira do livro onde os mais vendidos são indefectivelmente livros de culinária, pílulas pra sei lá o quê, agenda bruxa pascoalina e lançamentos das celebridades nativas?

Mas como é que um Estado que se considera o mais culto do Brasil consagra a autoridade moral de um tal Movimento Tradicionalista Gaúcho, que se arroga o privilégio de deitar regras sobre o que pode e o que não pode pra música ser regional? Outro dia, em pleno século 21, eles baniram a guitarra elétrica, como aquela passeata pré-tropicalista da qual os tropicalistas participaram. A música regional gaúcha, desse jeito, nunca vai gerar um Piazzolla, como a música regional argentina gerou.

Eu poderia continuar por horas e horas, e inclusive falar da disneylândia de bombachas do parque Harmonia, o grande evento cultural da cidade em setembro. Eu sei que meter a mão nesse vespeiro é pedir pra tomar pedra. Porque os gaúchos (eu prefiro me considerar ex-gaúcho) defendem com unhas e dentes a mediocridade que com denodo foram cultivando ao longo das décadas. Livres do peso dos substantivos, contentam-se com os adjetivos: o estado mais culto, o estado mais educado, o estado mais politizado etc etc etc.

Quando fizemos o Excelências na Transparência Brasil, em 2006, nem uma linha a respeito saiu nos jornais locais. (OK, saiu um editorial de um parágrafo na Zero Hora, sem dar o link. Mas quem é que lê editoriais?) E não é porque eu estava na coordenação: é que o projeto trazia informações importantes sobre a atuação dos deputados federais do estado. Proporcionalmente à quantidade de eleitores, era o único estado que tinha MENOS acessos do que gente votando. Na época, alguém comentou no blog do Deu no Jornal que lá o pessoal é tão politizado que "não precisava" das informações do Excelências. Pra mim, porém, politização sem base em informação não passa de torcida. É comum por toda parte do Brasil, claro. Mas qualidade zero. Leia mais sobre os gaúchos e a política aqui.

Foi exatamente em 2006, o ano da criação do Excelências, que a atual governadora foi eleita.

Ou seja: vocês colhem o que plantaram. Não menos. Foi uma mediocridade arduamente conquistada com muito esforço da parte de cidadãos, governos, empresas e imprensa. Mérito é mérito. Sirvam suas façanhas de modelo a toda a Terra.
por Marcelo Soares

 

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